Heimo Zobernig transformou o CAM em obra de arte
O artista austríaco transformou o CAM num espaço que desafia as noções de exposição e colecção de arte
A principal sala de exposições do Centro de Arte Moderna (CAM) da Fundação Calouste Gulbenkian está irreconhecível. Desapareceram as paredes e vêem-se as janelas que dão para o exterior. Três longas cortinas ligam áreas distintas da sala e ao fundo e à volta descobrem-se esculturas, pinturas, objectos. Para o visitante habitual a transformação é óbvia: alguém abriu o espaço.
O autor desta situação chama-se Heimo Zobernig (Áustria, 1958) e é o sujeito da exposição que na quarta-feira se inaugurou no CAM. Realizada em colaboração com a Tate St Ives e comissariada por Jürgen Bock, inclui obras do artista, da colecção da Gulbenkian e da instituição inglesa, numa reconfiguração e reordenação da arquitectura do respectivo espaço expositivo (no Outono, obras da fundação integraram a sua exposição na Tate).
O título, "Heimo Zobernig e a Colecção do Centro de Arte Moderna", revela-se, entretanto, na sua sóbria descrição, suficientemente ambíguo para motivar uma série de interrogações: como apresentar a arte? Como propor uma outra forma de recepção pública da obra de arte?
De certa forma, estas tinham sido as "perguntas" da primeira exposição de Heimo Zobernig em Portugal ("Project Room", Centro Cultural de Belém, 2000), também comissariada por Jürgen Bock. Agora, porém, o alcance da proposta tem um impacto maior, mais complexo. Encontramos objectos, obras de diferentes autores e um conjunto de intervenções disseminadas pelo espaço. O comissário introduz-nos à exposição e, pelo caminho, identifica algumas: "As cortinas de Chroma Keying fazem uma diagonal no espaço e ligam áreas habitualmente separadas. São normalmente usadas na televisão e cinema para criar cenários e fundos virtuais (pelo seu brilho e intensidade, quase que podemos dizer que são não-cores). E para as pessoas se sentarem em lugares onde isso não era possível, como as galerias onde estão a pinturas, o artista pediu que fossem colocadas estruturas móveis, habitualmente usadas na preparação de peças de teatro."
A transformação do espaço permite a criação de panorâmicas e planos onde se entrevêem as obras e o exterior numa relação que se adivinha singular não só com a luz natural mas também com a iluminação artificial. É como se toda a sala ganhasse uma natureza contemporânea. A palavra ao artista: "É frustrante entrar nestes espaços e encontrar as habituais paredes brancas. E afinal por que razão deve certa arte ser apresentada em cabines fechadas? O que fiz foi refazer a apresentação das obras. Abri o espaço. Foi uma reacção ao que encontrei e ao mesmo tempo uma oportunidade para trabalhar sobre o espaço de outra maneira."
O desaparecimento das paredes falsas é um elemento tão discreto quanto determinante na forma como percepcionamos a exposição e, como nota Jürgen Bock, pode inclusive servir de material para uma peça: "Com uma parede, o artista criou uma escultura de grande escala que é também uma base de uma das suas instalações: uma série de cadeiras do 'designer' Arne Jakobsen. São as cadeiras típicas dos museus internacionais, onde os seguranças costumam estar sentados e aqui surgem pintadas, douradas pelo próprio Zobernig."
Tempo, então, para perguntar: é "Heimo Zobernig e a Colecção do Centro de Arte Moderna" uma obra de arte? "Sim", responde o comissário. "A exposição torna-se, é a obra de arte. Podemos falar de duas ordens. A primeira é a da peça em si. A segunda é aquela de que precisamos para criar arte, ou seja, a própria apresentação tornou-se objecto de apresentação. E isto não significa que o artista fuja a contradições. Pelo contrário, está interessado nelas."
A colecção é um texto, o visitante um autor
Heimo Zobernig esteve duas vezes em Lisboa para conhecer a colecção do CAM e escolher as obras. Ao longo do processo contou com ajuda preciosa do ex-director Jorge Molder. O resultado é uma organização cronológica que não obedece a motivos e a classificações. Idiossincrática, portanto, e sobretudo liberta das censuras da história da arte. Mais do que escolas ou estilos, parece interessar ao artista destacar ambientes, atmosferas, gestos emancipadores como aquele que rodeou a realização de "Canção Popular" (1916), obra de Amadeo de Souza-Cardoso onde a pintura se alarga à tela; histórias como as que ligam os dois retratos de Fernando Pessoa feitos por Almada Negreiros ou as que se escondem por detrás dos corpos dos diversos auto-retratos da colecção.
Pelo meio revelam-se encontros casuais, "acidentes" como o quadro de Robert Delaunay ao lado do de Amadeo Souza-Cardoso, de uma tela de Paulo Rego junto de uma outra de Victor Willing, ou a situação quase iconoclasta de uma pintura que parece querer escapar à parede. E na outra sala, entre obras das últimas décadas do século XX, encontram-se pinturas de Bridget Riley, Peter Blake, David Hockney e Vítor Pomar, gravuras de Henry Moore, trabalhos de Helena Almeida, Lourdes Castro e Mário Cesariny e obras da colecção da Tate St Ives, como uma fabulosa pintura de Oskar Kokoschka ou um cartaz do artista alemão Martin Kippenberger.
Jürgen Bock faz questão de lembrar a seriedade, o gosto e conhecimento que guiam o gesto do artista: "O Heimo Zobernig nunca ridiculariza as obras. Ele é um conhecedor de arte. Alguém que tem uma ética muito elevada em relação aos colegas; que domina o campo da arte e que, aliás, ensina muito aos curadores."
A selecção, no entanto, não deixa de tornar implícita a ideia de que toda a história da arte é uma encenação, uma construção cultural que pode ser ou não desmontada ou reconstruída. Heimo Zobernig é cauteloso e devolve a hipótese ao visitante: "Olhei para as pinturas, para estas obras não como um historiador de arte, mas como um artista. Nesse sentido não creio que tenha que procurar um argumento para a forma como as seleccionei. Porventura terá que ser o espectador a encontrá-lo. Aliás, o espectador tem o poder de se transformar num autor. Passa a ser o autor da própria obra quando entra no espaço da exposição." E o comissário concorda: "Não há um discurso. Ou se existe, é apenas o das datas. O visitante torna-se autor quando busca as suas leituras."
Um dos pontos de partida de "Heimo Zobernig e a Colecção do Centro de Arte Moderna" consiste, curiosamente, numa das obras da colecção da Tate St Ives. "The Room in which Shakespeare Was Born", de Henry Wallis, de 1853 (os outros são "The Ghost Scene from 'The Castle of Otranto'", de Susanna Duncombe e uma escultura de Robert Gober). Mostra um quarto vazio, com diferentes objectos e planos, que pode ser entendido como um palco ou espaço onde algo pode acontecer: neste caso, a reunião de várias obras de arte. Ao público, todavia, não é oferecida a segurança habitual das categorias, mas um confronto com subtextos assinalados, por exemplo, nas obras do próprio Zobernig: o minimalismo, a natureza da escultura, a abstracção geométrica. Assinale-se um uso de materiais pouco austeros ou nobres em peças minimalistas e em colunas (esponja, papel higiénico), a ironia em torno do plinto enquanto construção de uma realidade no espaço (a obra de arte), as pinturas aparentemente geométricas que escondem referentes arquitectónicos e literários como a escrita do Marquês de Sade.
Jürgen Bock confirma as "provocações", mas nem por isso deixa de salientar no trabalho de Heimo Zobernig "uma eficácia nos meios, uma beleza que não se perde em grandes maneirismos, uma sensualidade muito discreta e eficiente".
Quanto ao artista austríaco reconhece que há algum humor nas suas obras, mas o equilíbrio, o distanciamento surge como pedra-de-toque da sua abordagem. "Por vezes há humor, mas também seriedade", diz, antes de sublinhar. "Prefiro o termo ironia, pois desconheço a verdade. E, afinal, a ironia também é uma forma de pensamento filosófico. Mas não tentei com esta exposição explorar ou questionar especificamente os lugares do modernismo ou de outro momento da história da arte. É provável que as pessoas encontrem relações, associações. Na verdade, quando avancei com esta exposição não sabia o que ia encontrar. E isso é algo muito singular e importante em arte. Não estava a construir uma casa ou a preparar uma peça. Até à inauguração não sabia o que estava descobrir."
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