A Hora e a Vez de Hélio Oiticica

Projetos pensados pelo artista finalmente saem do papel, e um farto material inédito começa a ser desvendado. O tempo mostrou que o criador dos parangolés era ainda maior do que se pensava – e nunca sua obra foi tão valorizada como agora

Por Bruno Moreschi

Entre as várias definições possíveis para a profissão de artista, existe uma que se aplica perfeitamente ao brasileiro Hélio Oiticica. Singela, a analogia está nas cartilhas das escolas públicas italianas e diz que os verdadeiros gênios da arte são seres que não andam, mas levitam, tendo, assim, uma visão excepcional do mundo. Segundo o mesmo material didático, alguns se elevam ainda além, voando como águias lépidas, capazes de enxergar muito além das copas das árvores. Oiticica seria um artista do segundo tipo. Sua visão era tão ampla que, em seu tempo, foi apenas parcialmente compreendido. Só agora, dada a distância do tempo, é possível colocar sua obra em perspectiva na história da arte. E o que se constata é impressionante: Oiticica foi o criador brasileiro que mais esteve sintonizado com a efervescência artística mundial das décadas de 1950, 1960 e 1970 (leia quadro nas páginas 56 e 57). Não que essa fosse sua preocupação. De forma consciente ou não — isso pouco importa para a crítica de arte —, Oiticica respirou com vigor descomunal os ares de seu tempo. É um nome planetário cuja importância não se restringe à arte brasileira.

Entre 1955 e 1958, Oiticica fez parte do Grupo Frente, que trouxe para o Brasil a abstração geométrica, além de militar na turma dos neoconcretos, após um convite feito pelo próprio líder do movimento, o poeta Ferreira Gullar. Assumidamente, ele flertava com a síntese pictórica do holandês Piet Mondrian (1872-1944) e do russo Kazimir Malevich (1878-1935), nomes de ponta naqueles tempos. Em seguida, o poder hipnotizador da cor inquietou-o. Tal qual o alemão Josef Albers (1888-1976), que, durante 26 anos, associou quadrados coloridos numa mesma tela, na série Homenagem ao Quadrado, Oiticica produziu pinturas monocromáticas. O artista rompeu de forma definitiva com as arestas do quadro em 1960. Na ânsia de fugir do achatamento da parede, pendurou sob finos fios transparentes chapas de madeira pintadas a óleo — concomitantemente, o americano Alexander Calder (1898-1976) tratava da mesma questão com singelos móbiles. Quando Oiticica criou suas famosas estruturas labirínticas batizadas de penetráveis, seu trabalho carregou-se de dramaticidade, e a arte virou sinônimo de experiência corporal. Um dos mais respeitados artistas contemporâneos, criador de surpreendentes objetos encurvados e brilhantes, o indiano-britânico Anish Kapoor é um dos muitos admiradores de Oiticica na comunidade internacional. Ele disse a BRAVO!: "Adentrar os penetráveis foi um choque. Quem se depara com as paredes coloridas não tem outra escolha a não ser iniciar uma relação dependente com a cor. Se fosse norte-americano ou europeu, estaria entre os grandes".

A partir de 1964, Oiticica embaralhou o que já estava anárquico. Ao vestir as pessoas com as obras-roupas parangolés, transformou o ser humano, tão acostumado no passivo papel de criador ou espectador, em suporte artístico. Dessa maneira, aproximou-se de performances como as do alemão Joseph Beuys (1921-1986) — o qual, envolvido em feltro, ficou certa vez numa sala, com um coiote, durante cinco dias (veja no quadro acima). Oiticica usava seus amigos do morro da Mangueira para vesti-los com os tecidos. Os colaboradores sambavam e, assim, criavam múltiplas formas temporárias no ar. Dessa maneira, o artista brasileiro falava de libertação tal qual Beuys: "Libertar as pessoas é o objetivo da arte". Mais tarde, enquanto museus e galerias do mundo inteiro se abarrotavam de instalações, ele também criou espaços. Morto em 1980 por um acidente vascular cerebral, deixou projetos de praças, que desejava que fossem públicas como as grandiosas obras do americano Richard Serra erguidas no mesmo período.

Alguns desses projetos só agora começam a sair do papel. Em outubro de 2008, Magic Square n° 5, uma praça repleta de paredes monocromáticas pensada pelo artista em 1978, foi construída no Instituto Cultural Inhotim, um espaço de 350 mil metros quadrados em meio à mata da cidade mineira de Brumadinho. Era só o início de uma espécie de "renascença Hélio Oiticica". No segundo semestre do ano passado, quando o sobrinho do artista, Cesar Oiticica Filho, resolveu iniciar a pesquisa para a produção de um documentário sobre o tio, deparou-se com um mundo de materiais inéditos que se revela cada vez mais valioso. Seu catálogo raisonné — aquele que pretende ser a súmula da obra de um artista — foi interrompido porque a cada dia surgem mais novidades. Entre o material audiovisual, uma raridade: um filme dirigido por Antonio Manuel registra uma das primeiras experiências de Oiticica vestindo moradores do morro da Mangueira com os famosos parangolés. Nesse baú de achados, há também um curta-metragem pouco conhecido. Rio to Oiticica (1980), de Regina Vater, segue a linha do cinema experimental da época não só ao brincar com a preposição em inglês no título. O vídeo reúne imagens aparentemente desconexas do artista na capital carioca.

O mais impressionante, porém, foi a descoberta de um singelo pedaço de papel rabiscado (veja na página seguinte). O traço rápido das letras, típico de uma mente apressada, denuncia a autoria de Oiticica. Nas anotações, as coordenadas do provável último projeto: a praça Magic Square n° 6. Inhotim, o mesmo espaço que ergueu a de número 5, pretende colocar de pé, nos próximos anos, o quadrado de 15 metros de altura com paredes em azul, amarelo, branco e vermelho, cercado por telas de arame no chão de terra batida.

CORRIDA CONTRA O TEMPO
Oiticica nasceu e morreu no Rio de Janeiro. Filho do fotógrafo José Oiticica Filho (1906-1964), só conheceu a educação formal aos 10 anos. Antes disso, era o avô José Oiticica quem lhe ensinava o abecê. As ideias anarquistas do avô podem também estar na raiz das futuras atitudes vanguardistas do neto. Hélio Oiticica jamais almejou fundar um movimento com suas experimentações, que costumava chamar de "além-arte". Se de fato existisse o movimento oiticicano, este conservaria apenas um mandamento: cada um deve ser sua própria vanguarda. Lançado no fim de 2008, o livro Hélio Oiticica: A Pintura depois do Quadro, publicado pela Silvia Roesler Edições de Arte, traz uma profética conversa do artista com o pintor Jorge Guinle. Palavras de Oiticica: "Tem-se essa mania de discutir o que é vanguarda. (...) Vanguarda como termo existia apenas quando existiam movimentos acadêmicos ou resistência acadêmica. Ou uma coisa é invenção ou não é. O resto não interessa". Difícil imaginar algo mais contemporâneo.

Reconhecida no exterior, a obra de Oiticica parece enfrentar percalços apenas no Brasil. No dia 15 do mês passado, a prefeitura do Rio de Janeiro barrou a liberação da segunda parcela de dinheiro para manter em cartaz até o fim de junho, como previsto, a impecável exposição Penetráveis, no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica. De acordo com a prefeitura, o bloqueio ocorreu em função de uma auditoria em todas as ações culturais da cidade. Cesar Oiticica Filho, o sobrinho que prepara o documentário sobre o artista, lamenta o fato de criadores como Oiticica serem mais valorizados lá fora do que no próprio país. Para isso, cita um conterrâneo contemporâneo: "Cildo Meirelles acabou de realizar uma exposição elogiada na Tate, de Londres. E adivinhe? A exposição não virá ao Brasil".

Quando Oiticica construía caixas e as preenchia com terra, criava uma metáfora sobre a relação entre a obra de arte e o mundo — que a conserva, como faz a caixa, mas também a corrói, como o solo. O legado de Oiticica passa a ser desenterrado. Uma consagração merecida para um artista que, de tão inovador, venceu a corrida que apostou contra o tempo.

http://bravonline.abril.com.br/conteudo/artesplasticas/hora-vez-helio-oiticica-467195.shtml

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