Joan Brossa "Uma vida a pé da letra"
por Ronald Augusto*
Ao contrário do que acontece com a maioria dos escritores e poetas cujos percursos textuais denunciam com o passar dos anos uma nítida tendência à acomodação –e que devido a tal situação, mais se mostram merecedores de prêmios e comendas–, há uma outra linhagem de criadores que não acompanha este fluxo até certo ponto entrópico. Pode-se dizer que os espécimes de semelhante linhagem preservam, a contragosto do solo, incorruptíveis, sua vitalidade e juventude.
Ao contrário do que acontece com a maioria dos escritores e poetas cujos percursos textuais denunciam com o passar dos anos uma nítida tendência à acomodação –e que devido a tal situação, mais se mostram merecedores de prêmios e comendas–, há uma outra linhagem de criadores que não acompanha este fluxo até certo ponto entrópico. Pode-se dizer que os espécimes de semelhante linhagem preservam, a contragosto do solo, incorruptíveis, sua vitalidade e juventude.
Enquanto os primeiros baixam a guarda a partir do momento em que chegam às portas da “impudente idade do bom senso”, os segundos lesam a regra e passam a encarar a tradição menos como coisa herdada do que como conquista permanente (Juan Ramón Jiménez dixit). E desde o irredutivelmente pessoal de suas propostas estéticas estabelecem, por assim dizer, uma tradição de ruptura -ou de abandono da consagração como topo cumulativo de feitos. Enfim, eles conservam intactos dentro de si o jovem poeta e sua ininterrupta curiosidade. A propósito disso, Ezra Pound propõe o seguinte: “Quando a curiosidade do escritor morre, ele está perdido – ele poderá fazer não importa qual acrobacia, mas nada escreverá de vivo se a sua curiosidade estiver morta”.
Numa lista provisória e prospectiva de representantes deste grupo de artistas que não se deixaram apanhar pelos estados frouxos da maturidade amortecida, poderiam ser incluídos, por exemplo, Bob Brown, Pierre Garnier, Nicanor Parra, Edgard Braga e, ainda, Manuel Bandeira e Murilo Mendes (ambos com ressalvas), entre outros. Entretanto, o meu cabeça-de-chave seria o poeta catalão Joan Brossa (1919-1998), de todos o que menos se aferra à figura do cidadão beletrista.
Faço estas considerações, motivado pela leitura do breve, porém instigante volume Poesia Vista, de Joan Brossa, lançamento da Amauta Editorial e da Ateliê Editorial. Como a bibliografia do poeta é vasta e sua curiosidade e atitude de vanguarda, o fizeram aventurar-se pelos mais variados tipos de discursos poéticos –fez “poemas escritos”, poesia visual, poemas-objeto, poesia cênica, roteiros cinematográficos, poesia transitável para espaços públicos e, até mesmo, instalações–, o que se tem traduzido e publicado de sua produção se caracteriza pela seleção daquelas peças mais representativas de cada uma dessas veredas.
Esta é a segunda vez que parte de sua poesia é enfeixada em livro no Brasil. Em 1999 foi lançado Poemas Civis pela Sette Letras, tradução de Ronald Polito e Sérgio Alcides. No entanto, João Cabral de Melo Neto foi o poeta descobridor de Joan Brossa e seu primeiro divulgador para uma audiência brasileira. Em 1950, Cabral publica em Barcelona Sonets de Caruixa, do amigo catalão e, no ano seguinte, escreve o prólogo de Em va fer Joan Brossa.
A seleção e tradução do material do presente volume, está a cargo de Vanderley Mendonça e os prefácios de Glòria Bordons e Haroldo de Campos demarcam com precisão o aspecto singular da linguagem de Brossa no quadro mais abrangente das revoltas e subversões político-estéticas do século vinte. Poesia Vista, que tem pouco mais de 120 páginas, está dividido em três seções: (1) A Letra – poemas visuais; (2) A Palavra – poemas escritos; e (3) A Forma – poemas-objeto. A opção pelo fracionamento, além de emprestar à antologia um esquema de orientação e coerência, tenta dar conta dos múltiplos modos de linguagem que estão em jogo nos experimentos de Joan Brossa, bem como sublinhar as particularidades dos procedimentos sígnicos específicos de cada projeto. Não obstante, as três seções podem ser vistas simplesmente como diversões ou traduções possíveis, num lance de fricção, para esta figura transformista que vem a ser a linguagem-brossa-nova, ela mesma, galhofeiramente intersemiótica. Isto é, o indecidível da sua informação estética, o pensamento-arte do poeta-prestigitador da Catalunha é aquilo que aprendemos a perder no processo tradutório da leitura criativa, onde a poesia-coisa é vertida da letra para a palavra e do translado desta para a forma instável.
O poema transversal de Joan Brossa se projeta como protéico ser de linguagem. Agora, o poema se presentifica como objeto, logo depois é traço visual, noutro lugar muda em dactiloscrito. Não raro, a metamorfose do poema se alarga em anamorfose quando, por exemplo, no poema-objeto “Kembo” (pg. 106), nos deparamos com um “relógio” de seis ponteiros, ou, ainda, quando Brossa inventa a (sua) “Roda” (pg. 119) descaradamente quadrada, não obstante o ligeiro arredondado dos seus ângulos. Forma e função se dissipam. O objeto é escovado, lavado de si mesmo. Mas, a deformação radical operada por este artesanato equívoco visa muito mais o âmbito semântico do que a materialidade ludibriada conquistada para o objeto. Por este motivo, me arrisco a dizer que estes poemas-objeto, a rigor, não participam do conceito de objeto trouvé, muito embora se possa aventar alguma afinidade entre Brossa e Duchamp ou denunciar ressonâncias surrealistas em sua poesia.
Na verdade, o poeta trabalha o objeto-clichê. Emblemas e signos do banal: o copo, o martelo, a lâmpada incandescente, o relógio, etc. Através de um rasgo metafórico, espécie de “sorriso sem gato” carrolliano, Brossa desloca o objeto-clichê de sua prisão redundante e o oferece ao apetite do leitor-fruidor como signo aberto ao investimento de sua parcela de pensamento. Mesmo que Joan Brossa se refira aos poemas-objeto como poesia háptica, nossa relação com eles se dá mais pelo lado mental do que pelo lado corpóreo ou físico. As transações são fortemente intelectuais. Então, tudo é símbolo? Devagar com o andor. O objeto-clichê brossiano problematiza esta questão sem chegar, contudo, a uma conclusão decisiva. Para começar, às vezes um charuto não passa de um charuto, isto é, a conotação (viés de leitura que se produz a partir de um dado repertório) depende mais do receptor do que do emissor. O objeto-símbolo não é portador de um manual de instruções capaz de levar o receptor a uma conotação pré-determinada.
A poesia do catalão (seja ela visual, escrita, cênica, etc) compele o leitor a um gesto de interpretação livre, congenial a esta poética de concreções semântico-visuais de “poemas que não geram linguagem, mas a suprimem”. O leitor-visitador, então, tem que se haver com o seu próprio desejo de linguagem se quiser plasmar algum significado provável para as irreverentes signagens de Brossa. Pois, nas lacunas de seus experimentos icônico-verbais, os sentidos se aproximam do limite da desaparição.
Frente a uma poesia que, segundo o seu próprio autor, é um jogo onde, sob uma realidade aparente, aparece uma outra de repente, o leitor se desobriga de qualquer espécie de fidelidade ao conteúdo. O leitor de Joan Brossa deve ser o da traição, às vezes de lápis em punho, mas sempre não-crédulo. Como reza o velho adágio: tradutore tradittore. A concepção do “leitor (tradutor) fiel” começa a vacilar. Como exigir fidelidade a um tipo de discurso sempre cambiante como o de Brossa? Discurso afeito ao afásico. Idioma de alguns instantes que nos permite apenas a captação desfocada de sentidos pulverizados, indícios do “conteúdo inessencial” examinado por Walter Benjamin. Embora a particularidade de tal poesia não passa abdicar de sua historicidade ela se configura, em fim de contas, como um gesto fora do lugar, um desvio, algo que não aponta senão para si mesmo. Uma coisa que coiseia.
Agora com vocês, para terminar, Joan Brossa por ele mesmo: “Estes versos, como/ uma partitura, não são mais/ que um conjunto de signos para/ decifrar. O leitor do poema/ é um executante (...)”. E, na íntegra, o poema “Peixe de Cera”: “Por não ter escrito o poema/ o leitor fica sem saber/ em que poderia consistir este/ peixe de cera”.
* Ronald Augusto nasceu em Rio Grande (RS) a 04 de agosto de 1961. Poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004) e No Assoalho Duro (2007). Assina o blog: www.poesia-pau.zip.net
Comentarios