Maquinarias ou sobre como ter um livro em mãos

Por Bárbara Piñeiro Pessoa

       No texto "De outra máquina celibatária", presente em A volta ao dia oitenta mundos (1967), Julio Cortázar tematiza a produção de uma série de maquinarias através do encontro imaginário entre Marcel Duchamp e Raymond Roussel em Buenos Aires. Duchamp, que viaja a Argentina em 1918, não poderia embarcar em outro navio que não fosse o que também levava a bordo Roussel e sua trupe de personagens. Tecido de encontros imaginários, o texto de Cortázar, feito teia de aranha, nos enreda em sua trama, mecanismo de articular e encadear encontros, ficção que junta sem cessar coincidências, convencendo-nos repetidamente de que algo como uma corrente magnética as atravessa. Polariza este encontro inicial uma sucessão de outros, regidos pela "legislação do arbitrário", segundo o autor; como se a maquinaria de sua escrita pudesse, brincalhonamente, deixar no novelo de sua engrenagem a ponta solta de um encontro futuro: a de Juan Esteban Fassio, profícuo inventor de máquinas patafísicas em Buenos Aires e criador da máquina de ler Nouvelle Impressions de Afrique, de Roussel, e Cortázar, quem simultaneamente em Paris, obsessivo com os trabalhos de Roussel e Duchamp, escrevia os monólogos de Persio, apoiando-se no sistema de analogias fonéticas rousselianas. O mesmo Fassio inventará a máquina de ler O jogo da amarelinha cujo esquema Cortázar nos mostra:


(...)

Los diseños 4 y 5 ilustran admirablemente esta ambientación favorable, sobre todo el número 5 donde no faltan ni el mate ni el porrón de ginebra ( juraría que también hay una tostadora eléctrica, lo que me parece una pituquería):



(...)

Nunca entenderé por qué algunos diseños venían numerados mientras otros se dejaban situar en cualquier parte, que he imitado respetuosamente. Pienso que éste dará una idea general de la máquina: 


No hay que ser Werner Won Braun para imaginar lo que guardan las gavetas, pero el inventor ha tenido buen cuidado de agregar las instrucciones siguientes: 

A- Inicia el funcionamiento a partir del capítulo 73 (sale la gaveta 73); al cerrarse ésta se abre la No.1, y así sucesivamente. Si se desea interrumpir la lectura, por ejemplo, en mitad del capítulo 16, debe apretarse el botón antes de cerrar esta gaveta. 
B - Cuando quiera reiniciar la lectura a partir del momento en que se ha interrumpido, bastará apretar este botón y reaparecerá la gaveta No. 16, continuándose el proceso. 
C - Suelta todos los resortes, de manera que pueda elegirse cualquier gaveta con solo tirar de la perilla. Deja de funcionar el sistema eléctrico. 
D - Botón destinado a la lectura del Primer Libro, es decir, del capítulo 1 al 56 corrido. Al cerrar la gaveta No.1 se abre la No.2, y así sucesivamente.(CORTÁZAR, Julio, 2002, p.134) 

       As gavetinhas sugerem a portatibilidade dos textos e o manual espacializa a configuração do livro a ser lido pela máquina: o romance de Cortázar célebre por configurar-se em pequenos capítulos que podem ser lidos tanto aleatoriamente como obedecendo a uma tabela que o antecede e sugere um percurso saltado de leitura. A comicidade da cena vem do desconcerto causado pelo confronto entre a intrínseca funcionalidade do objeto e sua disposição aqui posta a serviço de um exercício desfuncional, exercício que alberga a cama e o mate ou a genebra e ambientam a cena de leitura distraída que Cortázar defenderá como condição ideal do 
papamoscas, estado propiciatório ao encontro entre elementos aparentemente distantes da realidade. 

       Raymond Roussel, objeto das citações de Foucault e Roger Vitrac que abrem o texto, é o grande inventor de máquinas de toda sorte, máquinas de ler, pintar, esgrimir etc., que Cortázar evoca para abertura de seu caracol de referências e textos. A de Roger Vitrac nos conta: "N`est-ce pas des Indes que Raymond Roussel envoya un radiateur électrique à une amie qui lui demandait un souvenir rare de là-bas?" (VITRAC 
apud CORTÁZAR, 2002, p.132). Este "caso", contado em forma de pergunta, aponta ao assombro fundamental ante a máquina, base da atitude que tanto Cortázar como Fassio compartilham. Este não vem de outro lugar, de uma sobrenaturalidade ou do irreal, mas do próprio contato cotidiano com a experiência científica e tecnológica "naturalizada" em nossas vidas, a que nos faz frequentadores assíduos de um certo tipo de espanto. Sua presença íntima, sua invasão em nossa vida doméstica, torna tangível aquele absurdo para o qual "Ya no hay que creer porque es absurdo, sino que es absurdo porque hay que creer" (CORTÁZAR, 2002, p.34). 

       Mas aqui também reside seu encanto. Filha da racionalidade pragmática, a máquina seduz justamente quando, avessa a seus fins, descontrola e infringe aplanificação imposta. Em Impressões de África, Roussel mostra o funcionamento espetacular e desgovernado de algumas máquinas como, por exemplo, o da máquina de esgrimir, inventado pelo personagem Billaudière-Maisonnial, também passageiro do navio que leva os escritores rumo a Buenos Aires. Entre o construtor da máquina e sua invenção, a relação que se estabelece acentua a autonomia do segundo e as múltiplas e ricas possibilidades que o acaso apresenta no desvio de seu funcionamento regular. A figura do construtor que manipula sua máquina, mas que ao final se surpreende ao ver o resultado que produz, admirado de sua independência, encena a derrota algo erótica do inventor ante sua invenção.

       Há neste embate uma entrega prazerosa ao desencadeamento ininterrupto e a renúncia de intervenção que se repete na cena da máquina musical: "Ébrio de harmonia (...) em vez de mostrar o mais leve cansaço, se exaltava cada vez mais com o incessante contato dos eflúvios sonoros que ele mesmo desencadeava" (tradução do autor, ROUSSEL, 2003, p. 90). Em ambas as máquinas o poder controlador se retira e toma seu lugar a força do mecanismo acionado. Se o construtor planifica as máquinas e as põe em funcionamento, o automatismo do movimento maquínico destitui seu poder. Especularmente, a fantasia do autômato que se rebela contra o controle humano e contra seu próprio inventor se repete na relação entre escritor e a linguagem, como se esta, maquinaria através da qual se produz o sentido, fosse transtornada por dentro, fora da previsibilidade de seu negócio cotidiano, a própria comunicação.

       Em "Comment j'a ecrit certains des mes livres", ensaio que Roussel entregou a seu editor em 1933 com a indicação de que deveria ser publicado depois de sua morte, o escritor nos mostra e explica detalhadamente o modus operandi em questão, denominado por ele de "procedimento": "Escolhia duas palavras quase semelhantes (ao modo dos metagramas). Por exemplo, billard (bilhar) e pillard (pilhar). Depois acrescentava palavras idênticas, mas tomadas em sentidos diferentes, obtinha com isso frase quase idênticas (tradução do autor, ROUSSEL, 1963, p.23). A instituição de um início e um fim quase idênticos cria o contexto da repetição e manipulação de uma leve diferença, expondo o jogo linguístico das derivas semânticas e fonéticas. A linguagem, assim, avança sobre sua própria circularidade, sempre matizada, esticando os limites impostos pela sua própria natureza: a pobreza dos indicadores linguísticos em relação aos seus referentes, a assimetria entre a quantidade de palavras e a quantidade de coisas a indicar que Foucault leria, em seu magistral livro sobre o autor, como o próprio lugar de encontro das figuras do mundo mais afastadas, ponto de choque dos seres e diferença, desdobramento da linguagem que a partir de um núcleo simples faz nascer, sem cessar, outras figuras. O enigma de Roussel é, assim, o do da própria linguagem em sua polivalência; seu trabalho, ambiguamente, torna visível a opacidade que a constitui.

       O hiato entre a linguagem e as coisas, sua própria miséria e alienação, constitui a matéria prima do escritor que engenha e aciona a máquina de proliferar, repetir e transtornar sentidos em busca de outros. Na dança de cortejo com as coisas que a linguagem realiza, a distância que as separa, essa deficiência fundamental que a caracteriza, é simultaneamente espaço aberto de significação e origem de seu próprio movimento. 





       CODA 

       Ante tais máquina, o espectador terá pelo menos algumas suspeitas: o que fabrica uma máquina de ler? O que pode facilitar? O que este artefato, intrinsecamente ligado à racionalidade-para-os fins, pode contribuir ao exercício de uma prática, em primeira instância, do ócio? Junto com a citação de Vitrac, Cortázar encabeça seu texto com a de Foucault que parece entregar-nos de mão cheia a pista: 

Fabricadas a partir da linguagem, as máquinas são essa fabricação em ato, são seu próprio nascimentos repetido nelas mesmas; entre seus tubos, seus braços, suas rodas dentadas, seus sistemas metálicos, o novelo de seus fios, guardam o procedimento dentro do qual estão guardados (tradução do autor, FOUCAULT, 1973, p.47). 

       Entretanto, pela glosa, Foucault menos explica do que repete, mais atrai para o próprio jogo que define.
 Consagrando, na reescrita, a aliança lúdica entre segredo e reflexão crítica, o filósofo mantém o que do jogo pretende sigilo, ato de escrita que tambem é ato de uma leitura anterior. O jogo é de azar, o trabalho de escritura consiste em armar uma engenharia em que a semelhança é engodo e a repetição, diferença. O automático que aqui se produz torna reflexivo o ato criador, pois abre no seio da própria razão de ser da linguagem uma fenda, simultaneamente dobradura e ponto de fuga. Dito de outro modo, se a máquina funda um modo de produção repetitivo, monótono, mas extremamente eficaz, dada sua serialização, esta, uma vez transtornada, transforma sua potente produtividade em destruição continuada da linguagem cotidiana enquanto mecânica de sentidos cristalizados, recorrência do lugar comum que torna possível o funcionamento da comunicação. O procedimento rousseliano, então, é um "soltar" de cadeias que libera imagens extraordinárias, fora da previsibilidade da linguagem comum, sua energia se converte em glória disparatada, soberania que se afirma além de toda referencialidade. 

       O que se põe em funcionamento, em última instância, não é só a capacidade devoradora desta linguagem maquínica, mas o que sua fome exibe, o que em si é vazio e ânsia e também o nada. No roce do puro pastiche, este que quase esgota seu potencial crítico pela vizinhança estreita com a inutilidade, se descobre um cair no vazio, tática 
ready made que só se cumpre pela cumplicidade daquele que lê, a aceitação a participar de sua metalinguagem. Ao maquinar uma prática por excelência evanescente, o artefato de Fassio dirige-se, sobretudo, a uma cena de leitura: a imaginativa possibilidade de ler que coloca em questão a maneira como se lê, como se configura um livro, que caminhos percorremos quando o temos em mãos. 

       Há exatos cinquenta anos da publicação do romance que consagrou Cortázar e que marcaria uma forma de ler na qual se veja "el reverso de la costura" (CORTÁZAR, 2002, p.23), a máquina que se fabrica para sua leitura põe em diálogo direto o patafísico, Raymond Roussel e Marcel Duchamp, inquietando-nos ante sua presença calada, infiltração técnica no seio de uma prática que busca dinamitar as bases da racionalidade que a funda e justifica. A encruzilhada da estética de vanguarda aparece na tensão entre a autonomia desta linguagem que se desenreda do controle conceitual e organizador da racionalidade pragmática e a utopia de romper as barreiras entre vida e arte que impulsiona um movimento de constante busca desta mesma realidade. O paradoxo de uma máquina que desativa os usos automáticos da linguagem, que trabalha a favor de uma automatização da desautomatização, encena o impasse da possibilidade de significação que se trava mediante a subversão da ideia de máquina como epítome da racionalidade pragmática. A desfuncionalidade dessas máquinas faz de seu uso um óbvio pastiche que, entretanto, usa a seu favor as ideias de processo, repetição e proliferação próprias do maquínico. 

       Entre o arbitrário e o deliberado, o automático e o planificado, a autonomia e a práxis, a máquina resiste a uma explicação ao mesmo tempo em que dispara perguntas, sua presença silenciosa é, entretanto, indagadora. Sua atividade nos fala, sobretudo, da margem de indeterminação própria a toda leitura, esta zona cega que faz do estético um processo inacessível ao absoluto, a compreensão total. Necessário desconcerto que o humor volatiza, riso incerto daquele que no íntimo vacila e se pergunta: será que eu entendi a piada? 




Referências bibliográficas:

Cippolini, Rafael. (Org.).'Patafísica. Epítomes, Recetas, Instrumentos y Lecciones de Aparato. Buenos Aires: La Caja Negra Editora, 2009. 
Cortázar, Julio. A volta ao dia em oitenta mundos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. 
____. Rayuela. Buenos Aires: Suma de Letras Argentina, 2004. 
Foucault, Michel. Raymond Roussel. Buenos Aires: Siglo XXI, 1976. 
Locus Solus. Impresiones de Raymond Roussel. Madrid: Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, 2011. 
Roussel, Raymond. Impresiones de África. Madrid: Siruela, 2003.



                                                     * * * 

Bárbara Piñeiro Pessôa é licenciada em Língua Espanhola e Literatura Correspondente pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2008) e Língua Portuguesa e Literatura Correspondente (2007) pela mesma universidade. Foi bolsista de Iniciação Científica e monitora do Departamento de Espanhol da Universidade Federal de Juiz de Fora. Mestre em Estudos Literários Literaturas Hispânicas do programa de pós-graduação da Universidade Federal Fluminense (2010) com apoio do Cnpq. Especialista em Tradução em Espanhol/ Português na Universidade Gama Filho (2011). Cursa Doutorado em Literatura Comparada na Universidade Federal Fluminense durante o qual foi bolsista do Cnpq. Atualmente realiza doutorado sanduíche no Instituto de Literatura Hispano-americana da Universidade de Buenos Aires com o apoio de uma bolsa da Fundação Carlos Chagas de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: barnaypessoa@gmail.com





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