Black on Black White on White


Por Augusto de Campos

"Now hear this mixture

Where hip hop meets scripture

Develop a negative in a positive picture"

(Lauryn Hill)




Lance:

Há estranhas e belas constelações que parecem luzir, black on black, white on white, luscofuscantes, nos novos multihorizontes das artes. Uma arterioscopia constelar-musical poderia montar curiosos desenhos para os olhos e/ou antenas de algum observador despreconcebido. Por exemplo, o desenho que fazem as cantoras-compositoras rebeldes, estrelas "afrodissenters" (Erykah Badu, Lauryn Hill) — distintas das "afrodisiacs" (como Beyoncé) — com as inglesinhas bluebranquelas Joss Stone e Amy Winehouse. E com elas as negras Tania León e Pamela Z e a ucraniano-americana Victoria Jordanova. Mais e menos conhecidas. Sete estrelas.


Dados:

ERYKAH BADU (1971), Dallas, Tx, três filhos, "independent-minded artist " (NY Times). Baduizm (1997), Live (1997), Mama`s Gun (2000), World Wide Underground (2003), New Amerykah [Part One. 4th World War] (2008). Black "warrior princess", "…on & on & on"…analog girl in a digital world". Lap-top Garage Band em 2004. Soul-engenharias sonoras. "No turning back (I`m telling you no)." Montagem: cantos transtonais, falas entrecortadas, digitália — "hip-hop as a form of liberation, as a form of pre-resistance". BLUES + R&B + HIP HOP + NU SOUL. "Ya know the whole encyclopedia / But your nigga thinks I`m deeper". Sambaduizmo de "Booty" e de "Kiss me on my neck" in Mama`s Gun. Murmurrhumores. Sussurruídos. Metamúsica. Revivals billyhollidayanos em "Green Eyes" e no duo a capella + trumpete expandido em World Wide Underground: "Push up the fader / bust the meter / shake the tweeters / freakquency is born and neo soul is over / are you afraid of change? / well, change makes the world wild underground." Experimental sem ser grave, "groovy" sem ser brega. "Re-boot. Re-fresh. Re-start". Humor black & apelos rebelionários no meio de letras transgressivas em harlemês semiletrado. "I for eye": grafitemas e grafismos nos encartes desbordados e incompletos "que demandam lupa" (saudades dos LP). Vôos melismático-microtonizados, harmonias dissonantes e bricolagens atrevidas, com o apoio do grupo "underground" experimental Sa-Ra, levam o jazznewfreaksoul para não-sei, entre "scats" e "hops". Araçablues, transmidiática afrotecnológica. BACK BLACK !!!


LAURYN HILL (1975), South Orange, New Jersey, cinco filhos. "Killing me Softly" (1996) e The Fugees, rap-reggae, clamando em verbivoco "Vocab": "Aiyyo, sisters grab the mic and show you got the gift of gab". No mais conceitual The Miseducation of LH (1998) além das falas rap-rimadas, interlúdios conversacionais e incríveis "sliding" vocais. MTV Unplugged nº 2.0 (2002) começa outra história imprevista. Mistério. Não posa mais "para" o público: "I used to get dressed for you all, I don`t do that no more. / I used to be a performer, and I really don`t consider myself a performer so much anymore. / You don`t know me. / I`m not available. I`m just ready to be me." (!!!). Não mais a "voz imaculada": "If I sound harsh and raspy I can`t go out there, that`s a lie… I just sound like a singer with a lot of stuff in her throat." Prefere outras perfeições. No limite, pode cantar-chorar-rir, "sore throat", sem descontinuidade, desdenhando a rouquidão, violão lascado, usando até as falhas vocais — carneviva — como instrumento. "Laughtears", se diria, na expressão de JJ. Tem "guts", além de "soul". Como é que ela consegue despejar por quase quatro minutos e com tanta música — "War in the Mind", "Mistery of Iniquity" — essa torrente de palavras rápidas e rábidas? "Water", "I just want you around me": canta, minimalista, em círculos, glissando e reglissando. E como é que uma voz de tanta glissandoçura pode ser também tão "harsh"? Sete anos sem gravar. Rebel.


Para o bem ou para o mal, o rap reabilitou a rima — as rimas contínuas e as rimas em "-ation". Letras vomiletradas, toscofoscas, mas de um novo desenho ritmofalamelódico, cantofalado. E as mulheres (as melhores) desmachizaram o rap e o hip-hop, desgangtarizaram-no, hibridizaram-no. E o humanizaram. Para melhor e para mais longe.

JOSS STONE (1987), Dover, Kent, The Soul Sessions (2003), Mind, Body & Soul (2005), Introducing Joss Stone (2007). Janis na origem com Aretha na base ("All the king`s horses") e a "whistle-register" Betty Wright ("older sister" de Badu em "A.D. 2000") na produção, e "blackbackingvocals" adicionais na execução. Introducing JS, mais funkdançante, com abertura para o rap e vocalizações tira-fôlego. Tem "change" como tema e Lauryn Hill como recitante e referência — também citada por Amy Winehouse como influência em seu trabalho — além do "R & B Soul" Raphael Saadig como produtor. Janisjovial, emocional-preciosista, voz poderosa e "self-conscious", inevitavelmente "twenty". Que melhore as letras e não perca o soul…


AMY WINEHOUSE (1983), Londres, Frank (2003), Back to Black (2006). De volta ao (humor) negro e/ou à música black 60, pastiches avant-retro Motown-R&B. Escárneo escrachado "jazzy" reggae hip-hop qualquercoisa, "beats" e sax-pontuações histriônicas ("jazz ronronado e hip rosnado", Irish Times). Ler as letras para entender o seu "inglesês" engrolado. No encarte quase ilegível de Frank, Amy agradece a Sarah (Vaughan) e a Dinah (Washington), seu lado cool-virtuosista, mas, sinatra nada, vem dos vinis da vinícola Billie. "(There is) no Greater Love". Badu ("…lent you my new Badu") decentemente citada em Frank ("You make me flying"). Menos "baby, baby", as letras de Amy chegam aos bravos saltos-altos "fuck-me pump" e incluem um melopaico "mmmm" ("memories mar my mind") e uma semi-rima irônico-byrônica: "It`s got me addicted / Does more than any dick did". E o achado — nas apresentações ao vivo — da projeção ao primeiro plano dos dançarinos-cantores-terno-gravata-chapéu desconstruindo os "blackbacking vocals" clássicos. "Joss Stone com um pouco de lama no vestido" (definição citada na biografia de Amy por Chas Newkey-Burden).


Jovens British "soul sista`s", intuitivo-iliteratas, juvenilyrics, cantam o amor, tudo bem. Alguma coisa mais para cantar? Um mix das duas — uma dose de amybile em Joss, uma de joystone em Amy — e ei-las rejanisnovadas.

Em 3 de setembro de 1964, o The Times Literary Supplement de Londres (o segundo dos números especiais dedicados às novas vanguardas, subtitulado "Any Advance? The Changing Guard 2") publicou o meu poema BHITE & WLACK. Pré-sincronicidades.


Alguém se lembraria de constelar as "soul-sisters" com a afrocubana Tania León? Ou com a afroamericana Pamela Z? Falo da música contemporânea que os contemporâneos não ouvem.


TANIA LEÓN (1943), Havana, desde 1967 em NY. Indigena (1994), Singin` Sepia (2008). Sobre o CD Indigena, que inclui composições de 1986 a 1991, escrevi para a "Folha de São Paulo" um artigo que se intitulava Tania León, Cubamericana, mas teve o seu título alterado para um ambíguo Folklore Dissonante. Eu chamava a atenção para as surpreendentes obras "pan-cubanas" de Tania, "mais uma compositora à esquerda da esquerda", notável justamente por não fazer folklore e assumir uma radicalidade de linguagem, rara mesmo entre os seus colegas de geração. Entre outras coisas, ressaltei algumas passagens em iorubá de "Ritos", onde ocorre o contraponto de palavras entrecortadas à maneira do "hochetus" medieval (do francês, "hoquet" = soluço), sílabas e silêncios das várias vozes se interceptando num enredo complicado; e as canções "a capela" de "Rezos", com um impossível solo vocal grave-agudíssimo para contratenor, e "Tarura" (em "scat singing"). O texto — uma mistura colageada e fragmentária de espanhol, cubano e iorubá — homenageia Luther King na única palavra inglesa que contém ("Dream") e traz esta reminiscência afetiva da infância cubana da compositora: "Llevo dentro del corazón / la buena drume / negrita dru..." Agora, em Singin` Sepia, Tania León volta a mostrar a força de suas desconstruções abstrato-percussivas em composições como "Axon", para violino e computador interativo, "Arenas d`un Tiempo" (1992), para clarineta, violoncelo e piano, ou "Horizons" (1999), sinfonia orquestral. "Música trans-atlântica", "pan-latina", "música da diáspora cubana", segundo Jason Stanyek, professor do Departamento de Música da NY University.


Não sei se as blackpopulares gostariam da "Cuban sister", se ouvissem a sua música, nem se Tania gostaria delas, se fosse o contrário, mas "Axon" (2002), a mais recente das composições gravadas, tem anímicas sintonias com a Badu experimental e a "unplugged" Lauryn. [Axon: uma célula nervosa, ou neurônio, que conduz os impulsos elétricos através do nosso corpo]. São 12 minutos de diálogo entre os aventurosos desenhos violinísticos e o ondular agressivo e interecoante dos sons produzidos ao vivo, em computador — como se: música para pássaros e marimbas eletrônicas e/ou cruzamento de cordas lancinantes e ressonâncias de um mundo interior ou exterior que apenas adivinhamos. Tania mantém seu "són" e seu não.


Em 1985, quando Cage esteve em São Paulo, na 18ª Bienal, executou-se uma composição sua recente, Postcard From Heaven (Cartão-Postal do Céu), para de uma a 20 harpas (1982), que hoje pode ser ouvida-e-vista no YouTube, na extraordinária performance de 10 harpas que então se realizou. Cage afirma que sempre teve dificuldade em entender as harpas, geralmente usadas como instrumento de apoio, por isso resolveu estudá-las. Desarpízou-as. Transformou-as em orquestra de câmara, ora reduzindo a sua escala, com os pedais, a apenas quatro notas, ora explorando a complexidade microtonal de suas desafinações-"scordaturas" e ampliando a sua sonoridade natural com vocais "bocca chiusa". Harpolinização sonora. Chuva arcoirizada de sons.

Obra tão rara que só apareceu em CD no ano passado, numa leitura da harpista Victoria Jordanova e da cantora Pamela Z. Gravação de estúdio, com sobreposição de solos em muitas camadas sonoras. Victoria desafiando a harpa com tactilidades imprevistas. Pamela improvisando suas "humming notes", sirenedebussianas, "sem vibrato, pianíssimo, ao máximo do fôlego, nos registros mais altos e mais baixos da tessitura", como lhe pediu Victoria.


VICTORIA JORDANOVA (197?), de Belgrado para San Francisco. Compositora, além de virtuose da harpa, primeiro opus "Requiem para Bósnia", 1992, para piano quebrado, harpa e voz de criança. Entre as obras mais recentes, vídeos e áudios e, dentre estes, belos trechos das newcagianas "Meet me at the Small Dog Run" (1998) e "The Travelling Eye of the Blue Cat" (2001) podem ser ouvidos na rede. Internetizem-se. Newharpizem-se.


PAMELA Z (1956), Buffalo, NY, compositora e intérprete, audioartista performática, base em San Francisco. Repertório artecontemporâneo, "live eletronics", vocalizações "laptop" ao vivo, shows multimídia. "Minhas influências anteriores vieram em grande parte do rock dos anos 60, cantores/letristas dos anos 70 e opera clássica do século XIX. Mas agora eu estou me achando muito mais interessada em artistas punk e new wave, compositores minimalistas e uma porção de compositores eletrônicos experimentais, que vão de John Cage, Pauline Oliveros e Alvin Lucier a Laurie Anderson e Brian Eno" ("A Tool is a Tool", 1998). Informações e vídeos na rede, como Victoria.


Sete estrelas.

Antes de Gershwin, o compositor Virgil Thomson trouxe vozes negras para os "santos" de Gertrude Stein — somente vozes negras, por serem as mais belas e claras. Sobre ele, em 1949, Cage elaborou uma monografia — seu único estudo "acadêmico" — analisando longamente a cantata Capital, Capitals e a ópera Four Saints in Three Acts [quanto ao canto, "for blacks only"]. Cage afetava não gostar de jazz, embora tenha prestado o seu tributo ao gênero num breve "Jazz Study" e em algo do fraseado de suas peças para piano preparado dos anos 1940. Implicava com a regularidade do "beat" e a previsibilidade (relativa) das improvisações. Podia ter zen-confraternizado com os "wrong mistakes" de Monk e do som "progressive". Mas Cage gostava de dessacralizar. Dizia preferir o (que também pouco lhe importava) rock, porque era mais barulhento. E não podia imaginar que o jazz viraria cult e que Chet Baker não conseguia voltar aos EUA porque não tinha onde tocar… Pound re Pound: "Not all things from one man".


Falando de Four Saints in Three Acts — "uma obra que não tem nada a ver com a vida dos negros" — explica Thomson que escolheu um "all-negro cast" puramente pela beleza da voz, clareza da enunciação e elegância do porte. "Os negros — acrescenta ele em sua autobiografia — provaram-se notáveis em tudo. Não só enunciavam e cantavam. Eles pareciam entender tudo porque cantavam. Não opunham resistência à linguagem obscura de Gertrude Stein, adotavam-na como se fosse a deles, conversavam com citações do texto. Moviam-se, cantavam, falavam com graça e alegria, acolhiam os seus papéis com naturalidade, como se fossem os santos que diziam que eram."

Constelações.

Augusto de Campos nasceu em São Paulo, em 1931. Poeta, tradutor, ensaísta, crítico de literatura e música. Em 1951, publicou o seu primeiro livro de poemas, O REI MENOS O REINO. Em 1952, com seu irmão Haroldo de Campos e Décio Pignatari, lançou a revista literária "Noigandres", origem do Grupo Noigandres que iniciou o movimento internacional da Poesia Concreta no Brasil. O segundo número da revista (1955) continha sua série de poemas em cores POETAMENOS, escritos em 1953, considerados os primeiros exemplos consistentes de poesia concreta no Brasil. O verso e a sintaxe convencional eram abandonados e as palavras rearranjadas em estruturas gráfico-espaciais, algumas vezes impressas em até seis cores diferentes, sob inspiração da Klangbarbenmelodie (melodia de timbres) de Webern. Em 1956 participou da organização da Primeira Exposição Nacional de Arte Concreta (Artes Plásticas e Poesia), no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Sua obra veio a ser incluída, posteriormente, em muitas mostras, bem como em antologias internacionais como as históricas publicações Concrete Poetry: an International Anthology, organizada por Stephen Bann (London, 1967), Concrete Poetry: a World View, por Mary Ellen Solt (University of Bloomington, Indiana, 1968), Anthology of Concrete Poetry, por Emmet Williams (NY, 1968). Sua poesia está coligida principalmente em Viva Vaia (1979, 4ª ed. 2008), Despoesia (1994) e Não (2003, 2ª ed. 2008). Últimos estudos e traduções: Poesia da Recusa (2006), Quase-Borges (2006) e Emily Dickinson: Não sou Ninguém (2008). Site: http://www2.uol.com.br/augustodecampos/home.htm E-mail: a.campos@uol.com.br




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